Asmare e os catadores de papel
Construindo uma nova identidade
Autor: Mauro Vieira
Apresentado ao Unibh como requisito parcial à aprovação na disciplina T.I.G.
Como citar esta publicação:
VIEIRA, Mauro. Asmare e os catadores de papel: construindo uma nova identidade, 2010. Disponível em maurovieiraum.blogspot.com em 08 de Novembro de 2011.
Introdução
Os catadores de papel de Belo Horizonte, junto aos demais elementos
da cidade, compõem a paisagem da capital mineira há mais de
cinqüenta anos. Ultimamente, a presença desses cidadãos nas ruas
tem sido objeto de estudo de vários intelectuais. No entanto,
outrora, a presença dos catadores somente era sentida e percebida na
medida em que se tornava incômoda ou constituía ameaça à ordem e
à segurança urbana.
Como personagens da cena urbana de Belo Horizonte, os catadores
situavam-se nas fronteiras entre o trabalho e a mendicância, vistas
as condições em que viviam e desenvolviam seus trabalhos. Nesse
contexto, em 1990, surge a ASMARE (Associação dos Catadores de
Papelão e Material Reaproveitável) e, hoje, constata-se que ela é
considerada modelo nacional do movimento de exclusão-inclusão
social devido aos feitos junto aos catadores de papel de Belo
Horizonte. Tanto como política social, quanto como um empreendimento
de sustentabilidade, procura-se, neste trabalho, uma constatação
acerca da teoria e prática do empreendimento da ASMARE.
Belo Horizonte, então, é o local sobre o qual analisaremos a
construção de uma nova identidade para os catadores de papel na
linha do tempo. As mudanças na cidade, inclusive quanto às posturas
adotadas pelo poder público, as atitudes dos trabalhadores e o papel
desempenhado pela ASMARE compõem, assim, o objeto de estudo deste
trabalho.
Examina-se a questão urbana para a compreensão e o possível
domínio de alguns dos problemas cruciais relativos às práticas e à
vivência dos grupos sociais que, no meio urbano, empreendem seus
movimentos de resistência e luta pela sobrevivência, como é o caso
dos catadores de papel.
O esforço empreendido na transformação de excluídos em sujeitos
sociais, num processo reconhecedor do potencial de geração de
trabalho e de renda presentes nessa atividade, fortalece a discussão
do que seria a sustentabilidade e a parcela de contribuição que foi
agregada pelos catadores de papel a esta idéia. Entende-se, no
entanto, que não houve conscientização generalizada por parte da
sociedade na percepção da importância desse trabalho para a
limpeza da cidade e para a sustentabilidade. Busca-se, nesta questão,
compreender o preconceito incidente sobre os catadores através da
sociedade, e a construção de um novo conceito realizada por esses
sujeitos sociais.
1. Belo Horizonte e os novos belorizontinos
A capital mineira foi projetada por Aarão Reis e foi inaugurada em 12 de dezembro de 1897. O projeto era inovador e inspirado, principalmente, em Paris e Washington. Como aconteceu em Paris, para a viabilização da nova cidade, o Arraial do Curral Del Rei teve que ser demolido, restando, fora da área central, pouquíssimas construções. A novidade e o caráter exótico atraíam as pessoas que chegavam à cidade em busca de uma nova vida. A promessa de uma cidade moderna e organizada não contemplava, porém, os problemas do porvir. No projeto, estavam incluídos locais para o poder, Igreja, lazer, trabalho, habitação dos “poderosos” e dos funcionários públicos. Os pobres e trabalhadores, entre eles os operários que construíram a cidade, não estavam incluídos no espaço central. O crescimento da cidade seria do centro à periferia, garantindo, assim, a exclusão dos pobres do centro urbano. Portanto, o conceito “percebido no ar” hoje em dia sobre os pobres é, de fato, um pré-conceito, pois já fora “construído” antes da fundação da cidade.
A capital mineira foi projetada por Aarão Reis e foi inaugurada em 12 de dezembro de 1897. O projeto era inovador e inspirado, principalmente, em Paris e Washington. Como aconteceu em Paris, para a viabilização da nova cidade, o Arraial do Curral Del Rei teve que ser demolido, restando, fora da área central, pouquíssimas construções. A novidade e o caráter exótico atraíam as pessoas que chegavam à cidade em busca de uma nova vida. A promessa de uma cidade moderna e organizada não contemplava, porém, os problemas do porvir. No projeto, estavam incluídos locais para o poder, Igreja, lazer, trabalho, habitação dos “poderosos” e dos funcionários públicos. Os pobres e trabalhadores, entre eles os operários que construíram a cidade, não estavam incluídos no espaço central. O crescimento da cidade seria do centro à periferia, garantindo, assim, a exclusão dos pobres do centro urbano. Portanto, o conceito “percebido no ar” hoje em dia sobre os pobres é, de fato, um pré-conceito, pois já fora “construído” antes da fundação da cidade.
Belo Horizonte, assim, é uma cidade. Ou seja, apesar de soar óbvio,
é importante esquivar-se de idealismos e perceber que se encontra
nesta cidade, também,
profundas ironias e contradições (...) da cidade
moderna, pois nela se manifestam as divisões de classes e a miséria,
tão contrastantes como a luz e a obscuridade, a alegria e a
tristeza, a abundância e a destituição, a riqueza e a pobreza.
(FREITAS, 2005, p. 57).
Esses elementos já existiam nas outras cidades, onde os pobres
migrados de todas as partes moravam nas ruas convivendo com o
desemprego e com a miséria. Por conseguinte, o problema de Belo
Horizonte, claro, não é novo no mundo e nos remete à situação
das cidades européias no período pós-revolução industrial “em
razão da concentração de uma multidão de pobres que, ‘de forma
crescente e, por vezes desordenada, ocupava os espaços privados e
públicos.’” (FREITAS, 2005, p.56).
Consciente da repetição desses fatos nas grandes cidades, Belo
Horizonte foi projetada e construída com o intuito de evitar que
esse quadro caótico se repetisse na futura capital mineira.
Entretanto, a frustração deste projeto é contemplada nas ruas e na
vida dos que vieram do interior de Minas, e de outros estados
brasileiros, em busca de qualidade de vida, como se pode perceber na
declaração de Dona Geralda, uma das mais importantes entre os
fundadores da ASMARE:
Eu
sou de Belo Horizonte, mas minha mãe é do Serro. Minha mãe veio
pra cá conseguir uma vida melhor. Só que chegou aqui, minha mãe
também veio catar papel. (...) Ela me ganhou aqui. (...) Ela veio
pra cá conseguir trabalho e veio catar papel. Foi assim: eles vieram
pra cá, porque minha mãe tava muito doente. Ia chegar aqui e meu
pai arrumar um emprego pra conseguir fazer o tratamento de minha mãe.
Só que chegou aqui, minha mãe melhorou e meu pai morreu. Mas já
tinha um sonho de cidade grande, né? Que aqui ia conseguir tudo:
emprego bom, lugar de viver. (FREITAS, 2005, p. 59-60)
Assim, a “cidade-palco” desta análise é um ambiente
contraditório: planejamento, modernidade e riqueza dividem espaço
com exclusão social, preconceito e pobreza. Dona Geralda explicita a
inviabilização da cidadania na capital mineira, no início da
segunda metade do séc. XX:
P’ra
mim, cidadão é aquele que tem moradia, emprego, né, e trabalho...
porque sem trabalho cê num é cidadão, sem moradia cê num é
cidadão (...) cê vai ficar na rua, cê perde a cidadania! A minha
mãe perdeu a cidadania aqui em Belo Horizonte quando ela veio da
roça com o sonho de cidade grande. Pelo menos na roça, ela morava
numa tarimba de barro, mas tinha casa p’ra morar e era cidadã no
cabo da enxada. Quando ela veio p’ra qui ela perdeu a cidadania:
ela veio p’ra rua, ninguém olhou p’ra ela, ela foi pedir esmola,
foi espancada de polícia...1
2. Os catadores e o doloroso processo de exclusão
Por volta de 1945, a indústria oferecia bastante trabalho, e a cidade recebeu milhares de pessoas advindas do interior de Minas e de outros estados. Mas, o mercado não foi capaz de absorver toda aquela massa, e a cidade não criara estrutura para receber tamanha demanda. Por causa do êxodo rural descontrolado, as pessoas chegavam à capital sem ter onde morar, morando “de favor” ou vivendo nas ruas até a chegada de uma boa oportunidade de trabalho e moradia.
Por volta de 1945, a indústria oferecia bastante trabalho, e a cidade recebeu milhares de pessoas advindas do interior de Minas e de outros estados. Mas, o mercado não foi capaz de absorver toda aquela massa, e a cidade não criara estrutura para receber tamanha demanda. Por causa do êxodo rural descontrolado, as pessoas chegavam à capital sem ter onde morar, morando “de favor” ou vivendo nas ruas até a chegada de uma boa oportunidade de trabalho e moradia.
Essa massa de trabalhadores sem emprego dividia os espaços públicos
com um “grupo” que já existia em todas as metrópoles: os
vândalos, bêbados, bandidos e pessoas de má fé. Como
diferenciá-los ao passar por eles nas ruas? Visualmente, os dois
grupos não conseguiam se vestir e cuidar da higiene, assim sendo,
podia-se facilmente confundi-los. Conforme um velho ditado, “a
primeira impressão é a que fica”, os cidadãos já bem
estabilizados em Belo Horizonte lançavam seus olhares sobre esses
trabalhadores e desde já lhes imputavam julgamento.
A capital mineira tinha, então, um novo grupo de pobres e
miseráveis: trabalhadores desempregados com carteira de trabalho na
mão. Desse grupo, além de crianças, surgem os catadores de papel,
como destaca Freitas:
O
mapa da pobreza no Brasil depois de quarenta anos ou mais de
industrialização e modernização encontra-se bastante
diferenciado. Basta olhar os novos personagens que percorrem as ruas
nos grandes centros urbanos do País. Entre os miseráveis que
circulam pelas ruas ‘compondo a paisagem urbana, além dos
tradicionais e conhecidos habitantes dos centros urbanos – os
mendigos, bêbados, inválidos, malucos e deficientes mentais –
hoje vieram a se somar os desempregados, aposentados e também
trabalhadores de carteira no bolso’, gente que perdeu o emprego e
busca alternativa de sobrevivência na informalidade desqualificada.
É o caso dos catadores de recicláveis, uma gente que ‘batalha
diariamente’. (2005, p.19)
Aos indivíduos que trabalham com o lixo sempre foi imputada uma
imagem social extremamente negativa, por uma visão de que seriam a
“sujeira” da cidade. Eles foram desvalorizados pela sociedade,
confundidos com vândalos e nem eram citados nos meios
científicos/acadêmicos. No entanto, é necessário diferenciar os
catadores dos vândalos, pois os catadores projetam a busca por
respeito e por um futuro melhor na coleta dos materiais
reaproveitáveis, ou seja, pelo trabalho que desenvolvem. Mas, mesmo
que várias empresas se beneficiassem de suas atividades, a sociedade
via a tarefa dos catadores como “trabalho”?
Segundo Marx (1976, apud QUINTANEIRO, 2002, p. 24), quem não
trabalha está alheio à sociedade por estar fora dos meios de
produção. A reciclagem, como conhecida hoje, é um conceito novo
ligado à idéia de diminuição da poluição, à consciência dos
fins dos recursos naturais e ao aproveitamento do que já fora
produzido. Esses pensamentos não existiam nos séculos anteriores e,
para o homem, os recursos naturais estariam sempre disponíveis. Até
a idéia de “lixo” tinha uma concepção diferente da existente
hoje: não existia a idéia de reaproveitamento e reciclagem,
portanto as poucas exceções referiam-se a elementos perecíveis,
como restos de alimentos jogados aos animais. Ou seja, o conceito de
“trabalho” estava ligado ao que era produzido, não ao que era
reaproveitado do que já fora produzido. O Estado não reconhecia
esse ofício como integrante dos meios de produção, assim como
ainda hoje não reconhece vários outros ofícios.
Assim, na sociedade, os catadores de papel não eram equiparados às
classes trabalhadora s e, conseqüentemente, ideologicamente, não
eram vistos como trabalhadores. Controversamente ao papel que
desenvolviam, eram equiparados aos vadios e recebiam da sociedade o
mesmo quinhão. Ainda, segundo Durkheim (1974), na teoria do
Funcionalismo, os elementos da sociedade existem porque exercem uma
função na sociedade. Os elementos que não exercem função na
sociedade, não são considerados membros da sociedade. Diante da
ausência do pensamento existente hoje de que o reaproveitamento
cumpre uma função social, a idéia que permeava o consciente das
pessoas ao depararem-se com um homem ou uma mulher “abrindo”
lixos de uma cesta na rua era esta: ele não está trabalhando, só
está procurando algo para vender e ganhar dinheiro fácil.
Atualmente, Dona Geralda nos expõe um novo significado para “lixo”:
“O lixo não existe. Eu acho que o lixo só tá na nossa cabeça,
né, porque o lixo só é lixo quando cê mistura ele, quando cê faz
uma separação adequada no lixo e dá o destino correto, ele não é
lixo, é trabalho e renda”.2
Mesmo trabalhando diariamente e sendo vítimas do preconceito, outro
fator negativo que incidia sobre os catadores de papel era a grande
disponibilidade de mão-de-obra que, como contra golpe, reduzia ainda
mais a percepção pecuniária do trabalho. A desvalorização da
função somava-se à desvalorização do trabalho realizado. Diante
desse quadro, cotidianamente, assistia-se nas ruas a transformação
da busca por um sonho na cidade grande em um pesadelo, a conquista de
renda e trabalho digno em uma luta por sobrevivência. Assim, as
expectativas trazidas pelos homens e mulheres para a capital mineira
foram reduzidas à conquista do pão-de-cada-dia, como se pode
averiguar no depoimento de Maurício, associado da ASMARE: “agente
trabalhava para comer o pão do dia”.3
Quem se preocuparia com questões políticas da época, como a
mudança da capital brasileira do Rio de Janeiro para a nova
Brasília, frente a si mesmo e aos filhos quase morrendo de fome?
Trabalhar para comer, segundo Marx (1975, apud QUINTANEIRO, 2002, p.
50-51), transforma os homens em alienados aos movimentos da sociedade
e equipara-os aos animais. Quem se preocuparia com o fim da segunda
guerra mundial frente à chuva e aos filhos sem um teto? Muitas vilas
surgiram e invasões de terrenos particulares e públicos ocorreram
nesse período como reflexo da busca desesperada por um teto.
Como produto do processo de exclusão, o catador de papel “respira”
uma realidade construída por elementos que extrapolam os trabalhos
realizados por ele. A presença desses elementos, como as ideologias,
é apontada por Freitas:
Um
dos atributos mais evidentes dessa desvalorização é a acusação
sob a qual vivem esses trabalhadores. Estigmatizados de vagabundos,
esses indivíduos carregam, além do pesado fardo da privação dos
meios básicos de sobrevivência, o peso de uma ideologia que explica
a sua inferioridade em relação aos bem sucedidos da sociedade.
(2005, p. 22)
A seguir, investiga-se a relação desses elementos com a força de
trabalho dos catadores.
3. O valor do trabalho sob a ótica da superestrutura
A diferença entre um prefeito, um médico e um catador de papel pode
começar a ser entendida através de um estudo da ótica da
sociedade, em determinado período. Dentro do estudo dessa ótica,
averiguando-se as heranças ideológicas existentes, pode-se apontar
elementos reais e ideológicos que sustentam a relação entre as
classes supracitadas.
Iniciando-se este estudo, a partir dos parâmetros de Marx (1976),
verifica-se que o conjunto das forças produtivas e das relações
sociais de produção de uma sociedade forma sua infraestrutura que,
por sua vez, é o fundamento sobre o qual se constituem as
instituições políticas e sociais.
A
estrutura social e o Estado resultam constantemente do processo vital
de indivíduos determinados; mas não resultam daquilo que esses
indivíduos aparentam perante si mesmos ou perante outros e sim
daquilo que são na realidade, isto é, tal como trabalham e produzem
materialmente. (MARX, 1976, apud QUINTANEIRO, 2002, p. 36)
Segundo a concepção materialista da história, na
produção da vida os homens geram também outra espécie de produtos
que não têm forma material: as ideologias políticas, concepções
religiosas, códigos morais e estéticos, sistemas legais, de ensino,
de comunicação, o conhecimento filosófico e científico,
representações coletivas de sentimentos, ilusões, modos de pensar
e concepções de vida diversos e plasmados de um modo peculiar. A
classe inteira os cria e os plasma derivando-os de suas bases
materiais e das relações sociais correspondentes. Esta é a
superestrutura ou supra-estrutura. (QUINTANEIRO, 2002, p. 36)
O trabalho que é, de fato, realizado constrói a infraestrutura. As
ideologias, crenças, leis e consciências são construídas sobre
esta infraestrutura. A busca pelo domínio sobre os meios de produção
resultaram em várias ideologias no decorrer dos séculos. Existiram
e existem pessoas pensando a sociedade. Cientes dos valores e dos
movimentos que condicionam as pessoas, vários homens e instituições
manipularam valores e ideologias a fim de colherem fatos e produtos
diversos na história. O poder divino dos reis legitimado pela igreja
católica na Idade Média, as ideologias criadas na formação dos
estados nacionais e as teorias protestantes em volta da economia são
exemplos históricos de tais manipulações.
Como já fora apontado anteriormente neste trabalho, a atividade dos
catadores de papel não era vista como trabalho porque não “fazia”
parte dos meios de produção. Ou seja, o conjunto das ideologias
presentes na superestrutura não legitimava o trabalho dos catadores
de papel frente ao olhar dos demais civis. Porém, essa visão era
única? Não. Além dos próprios catadores que “enxergavam” suas
atividades como trabalho (apesar de, concorrentemente, pintarem seu
auto-retrato sob a ótica da sociedade), também existia um grupo que
se beneficiava tanto do trabalho quanto da visão vigente a fim de
“baratear” o serviço através da desvalorização do
trabalhador.
A inutilidade, aparente, à vista do poder público e da maioria da
sociedade “condenou” o trabalho e o trabalhador catador de papel
à marginalidade. O reflexo desta “condenação” é, além do
status de marginal, a retribuição pecuniária miserável.
Por conseguinte, essa baixíssima retribuição resulta na baixa
manutenção dos meios de sobrevivência que, por sua vez, reflete um
perfil que o assemelha aos marginais resultando, assim, num menor
acesso a melhores empregos... é um ciclo de fatos reais condicionado
por ideologias.
Tal é o poder dos elementos da superestrutura sobre as relações de
trabalho e o seu valor:
A
divisão social do trabalho expressa modos de segmentação da
sociedade, ou seja, desigualdades sociais mais abrangentes do que a
decorrente da separação entre trabalho manual e intelectual (...).
A partir dessas grandes divisões, ocorreram historicamente outras
como, por exemplo, entre os grupos que assumiram as ocupações
religiosas, políticas, administrativas, de controle e repressão,
financeiras etc. A cada um desses grupos cabem tanto tarefas
distintas quanto porções maiores ou menores do produto social, já
que eles ocupam posições desiguais relativamente ao controle e
propriedade dos meios de produção. Assim, o tipo de divisão social
do trabalho corresponde à estrutura de classes da sociedade.
(QUINTANEIRO, 2002, p. 35)
Segundo Freitas, nas cidades, “uma das razões que torna mais
explícita a heterogeneidade dos indivíduos é a distribuição
desigual de riquezas, dos espaços urbanos e do acesso às vantagens
da modernidade urbana” (2005, p.51). Dentro dessa atmosfera, a
aplicação ativa de dignidade e cidadania na vida dos catadores de
papel, como trabalhadores e cidadãos comuns, fora comprometida. Eles
foram excluídos da vida social e da tomada de decisões,
encontrando-se, naquele tempo, marginalizados. Concorrente a essa
realidade, médicos e políticos gozavam de uma maior “fatia” do
produto social, além de um status inalcançável para os
catadores de papel.
4. O catador de papel e o "gari"
Analisando-se “as realidades concretas onde essas experiências são
vividas” (FREITAS, 2005, p. 17), observa-se que há diferenças
entre os olhares oriundos da sociedade sobre estas duas personagens
vítimas do preconceito, em Belo Horizonte: o catador de papel e o
“gari”.
Imaginando-se uma cena, hoje comum nos centros urbanos e nos bairros:
um grupo de varredores de rua, os “garis”, devidamente
uniformizados, explicitando o escudo e o nome da prefeitura,
apresentando cabelos e dentes mal cuidados, usando vassouras
fabricadas manualmente a partir de um cabo de madeira e folhas secas,
além de pás e carrinhos adaptados com grandes baldes... varrem a
rua e sentam-se, logo após, para descansar. Logo à frente, um
catador “de lixo”, vestido com roupas simples (e até rasgadas),
apresentado cabelos e dentes mal cuidados, usando sacos e um carrinho
de mão, aproxima-se da cesta de lixo de uma residência e abre as
sacolas e caixas de lixo procurando materiais para revender a uma
empresa...
Apesar de serem árduos e insalubres os trabalhos executados pelo
grupo de “garis” e pelo catador, hipoteticamente, um morador do
bairro, trabalhador da indústria ou do comércio, vê-os de formas
diferentes. Deparando-se com um “gari”, ele está frente a um
sujeito de “baixo nível social”, que executa um trabalho árduo
sob o sol e uma função de baixíssimo status social (pode-se
indicar como uma das raízes desse pensamento a construção da idéia
sobre a diferença entre trabalho manual e intelectual). O morador
não desejaria, de forma alguma, que seus filhos trabalhassem como
“garis”. Porém, o morador vê o “gari” como um trabalhador e
como um funcionário público. A leitura visual que ele faz já lhe
indica que o “gari” desempenha uma função importante e
essencial na sociedade (limpeza das ruas), que essa função é
reconhecida pelo Estado e que o “gari” percebe todas as garantias
pertinentes aos servidores públicos. Portanto, é um trabalhador
que, como um trabalhador da indústria ou do comércio, cumpre
tarefas para perceber renda para o sustento da família.
Deparando-se com o catador, o morador não sabe de onde ele veio e
nem o destino do material recolhido. Ao abrir o lixo das sacolas, o
morador já teme atos irresponsáveis como o abandono de sujeira à
sua porta, confundindo essa atividade com resultados do vandalismo. O
impacto visual impressiona e a seleção e recolhimento de materiais
recicláveis não é, necessariamente, um serviço de limpeza urbana.
Portanto, não é visto como uma função na sociedade. Além do
mais, caso o catador executasse quaisquer atos irresponsáveis no
exercício da sua “função”, o morador percebe a dificuldade de
viabilizar um processo legal contra alguém que, talvez, nem tenha
documentos e detenha origem e caráter desconhecidos. Quanto ao
“gari”, a prefeitura é responsabilizada pelos resultados dos
atos de seus servidores quando esses estão no devido exercício de
suas funções, movendo ações regressivas contra eles e o devido
ressarcimento à parte prejudicada. O respeito ao “gari” também
é garantido pela lei, enquanto servidores públicos, visto que o
desacato a servidores públicos no exercício de suas funções
constitui crime.4
O “gari” já fora registrado e reconhecido pelo Estado, diferente
do catador que desempenha sua função com autonomia. Quando Freitas
refere-se à atividade dos catadores como informal e desqualificada,
percebe-se que a idéia de inclusão também está ligada à
aceitação destes pelo Estado, reforçando ainda mais essa idéia
quando os catadores empenham-se “na luta coletiva por
reconhecimento, direitos e cidadania” (2005, p. 15). A busca por
legitimação por parte do Estado é tão importante no séc. XX e
XXI que sua aprovação superou o valor da aprovação religiosa,
mesmo que esta ainda mantenha forte influência sobre a sociedade.
Por isso,
o conflito na relação com o poder público serviu de
impulso para um novo posicionamento da categoria na luta coletiva,
procurando legitimar o direito de trabalhar em condições de
dignidade, definindo-se enquanto trabalhadores autônomos”
(FREITAS, 2005, p.17).
Ou seja, foi necessário ao catador alinhar-se a um novo perfil a fim
de responder às exigências do Estado para, então, requerer dele o
reconhecimento como parte de “seu corpo”.
O reconhecimento do Estado reflete não somente na visão da
sociedade sobre o catador, mas, também, na percepção de direitos.
O “gari” recebe, pelo menos, um salário mínimo garantido por
lei, tem direito a férias, 13º salário, licença
maternidade/paternidade, aposentadoria (pois contribuem com a
previdência) e/ou outros benefícios. No entanto, o catador não
goza desses direitos e, hoje, somente poderá gozar de aposentadoria
se, porventura, contribuir com a previdência social. Esse conjunto
reflete na “pintura do retrato” que é feito pela sociedade,
aliviando ou não a idéia que os catadores fazem de si mesmos.
Percebe-se neste caso, conforme o que fora visto anteriormente, que
elementos da superestrutura (o Estado, as leis, as classes sociais e
seus status, dentre outros) interferem na interpretação dos
trabalhos realizados e, conseqüentemente, sobre o que cada executor
de tarefas recebe da sociedade.
5. A pastoral de rua
A pastoral de rua é um grupo incentivador da construção da cidadania do povo de rua, orientando-os no sentido de conquistarem sua inclusão social e se descobrirem como seres humanos com direitos e deveres que tragam consigo identidade e busca por melhores condições de vida.
A pastoral de rua é um grupo incentivador da construção da cidadania do povo de rua, orientando-os no sentido de conquistarem sua inclusão social e se descobrirem como seres humanos com direitos e deveres que tragam consigo identidade e busca por melhores condições de vida.
A
Pastoral de Rua é uma equipe de leigos e religiosos, sensibilizados
com o sofrimento das pessoas que moram nas ruas ou delas sobrevivem.
A Pastoral se coloca ao lado dessas pessoas e "escuta" seus
clamores. Seu principal objetivo é abordar aqueles que vivem nas
ruas, conviver com eles de forma fraterna e solidária, criando laços
de amizade. São pessoas que, em sua maioria, vieram de cidades do
interior ou de outros estados. Fazem das ruas e praças da cidade
suas moradias. Desempregados, buscam alternativas de sobrevivência.
Na capital, acabam perdendo suas referências: não têm como se
comunicar com a família, não possuem endereço fixo, não conseguem
emprego e documentos, não têm onde guardar seus pertences perdem a
identidade e o próprio nome. (www.arquidiocesebh.org.br,
acesso em 07/11/2010)
O trabalho da pastoral de rua foi essencial para que se chegasse ao
reconhecimento dos catadores de papel como gente que quer mudança e
que não apenas deseja sobreviver, que deseja trabalho digno e
reconhecimento de sua importância, pois até então quem passava por
eles olhava-os com desprezo e indiferença, pois estavam à mercê da
mendicância.
Os
agentes da Pastoral atuam animando e estimulando a organização do
povo, resgatando a beleza da vida e denunciando os mecanismos de
morte, buscando acolher o clamor do povo excluído como sinal visível
do Reino, firmando o compromisso em defesa da vida...
(www.arquidiocesebh.org.br
acesso em 07/11/2010)
A hegemonia das ideologias advindas da Igreja Católica marcou a
Idade Média. Apesar do deslocamento dessa hegemonia para o Estado,
após a formação dos Estados Nacionais, a Igreja ainda exerce forte
influência sobre a sociedade e permanece entres os “grandes”
elementos da superestrutura. É difícil calcular o poder que os
homens representantes da Igreja exercem sobre os indivíduos, o que
nos remeteria a quase toda história da humanidade, porém este
evento não faz parte do objeto deste estudo.
Destaca-se, então, a chegada da Pastoral de rua dizendo que os
catadores de papel são cidadãos, que têm direitos, que fazem parte
da nação e devem ser assistidos pelo Estado, que são filhos de
Deus e são amados pela Igreja, que são trabalhadores e são tão
dignos quanto aos demais trabalhadores... tudo isso gerou um forte
impacto sobre os catadores, pois um outro grupo diferente de sua
classe social e representante de um forte elemento da superestrutura
trouxe um novo significado para os catadores de papel, legitimando
seu “trabalho” frente à sociedade. Um elemento da superestrutura
construiu, assim, um significado paralelo sobre um elemento da
infraestrutura. Segundo Maurício, o maior parceiro para os catadores
de papel “foi a Pastoral de rua. Eles que começaram com a gente,
eles que deu o primeiro passo, então, pra mim, eles é o mais
importante”.5
Em um segundo momento e aparentemente puntual, a atuação da
pastoral representando os catadores criou um forte impacto social
como, por exemplo, na mediação dos convênios entre os catadores e
empresas ou órgãos públicos. Ou seja, a Igreja tem uma forte “voz”
na sociedade e a Pastoral de rua “diz” que os catadores de papel
são trabalhadores e que suas atividades são “trabalho”. Esse
novo discurso consciente trouxe a esperança e uma visão de mundo
para os catadores na sua vida difícil: “Até que enfim eu achei
uma pessoa que... fizesse um tiquinho de caso de mim.” (DONA ANA
apud FREITAS, 2005, p. 37).
A jovem Pastoral de rua, com apenas três anos de fundação, já
realizara grandes feitos e sua atuação conscientizadora e
representativa, junto aos catadores de papel, resultaria na criação
de uma representação jurídica: a fundação da Associação dos
Catadores de Papel, Papelão e Material Reaproveitável de Belo
Horizonte – ASMARE.
6. A criação e a fundação da Asmare
Após o advento da Revolução Industrial, um dos efeitos observados por Karl Marx (1975, apud QUINTANEIRO, 2002, p. 51) sobre a sociedade foi a alienação do homem. Esta ocorria quando o trabalhador estava alheio ao processo de produção, ignorante do todo. Dentro da indústria, o trabalhador não era dono dos meios de produção, não participava de todas as fases do processo, devido à divisão de tarefas, e não tinha ciência de todo processo. Por conseguinte, de modo geral, não conhecia a origem da matéria-prima a ser trabalhada por ele, nem dos produtos que lhe seriam anexados e nem do destino do conjunto produzido. Diante disso, o trabalhador oferecia sua mão-de-obra em troca do valor pago pelo dono do meio de produção e não tinha ciência do valor do produto social que produzira. Todos esses fatores possibilitaram grandes explorações pelos detentores dos meios de produção sobre os trabalhadores alheios aos valores acumulados no processo.
Após o advento da Revolução Industrial, um dos efeitos observados por Karl Marx (1975, apud QUINTANEIRO, 2002, p. 51) sobre a sociedade foi a alienação do homem. Esta ocorria quando o trabalhador estava alheio ao processo de produção, ignorante do todo. Dentro da indústria, o trabalhador não era dono dos meios de produção, não participava de todas as fases do processo, devido à divisão de tarefas, e não tinha ciência de todo processo. Por conseguinte, de modo geral, não conhecia a origem da matéria-prima a ser trabalhada por ele, nem dos produtos que lhe seriam anexados e nem do destino do conjunto produzido. Diante disso, o trabalhador oferecia sua mão-de-obra em troca do valor pago pelo dono do meio de produção e não tinha ciência do valor do produto social que produzira. Todos esses fatores possibilitaram grandes explorações pelos detentores dos meios de produção sobre os trabalhadores alheios aos valores acumulados no processo.
Construindo-se uma analogia e aplicando-se a idéia de “alienação”
de Marx, aponta-se a exploração da mão-de-obra dos catadores de
lixo, pelas empresas públicas e privadas de reciclagem e
reaproveitamento, e a alienação desses sobre os valores presentes
no processo de produção. O catador não era dono desse meio
específico de produção e vários elementos da superestrutura (como
as leis, políticas e os conceitos construídos) impediam essa
possibilidade. No entanto, esses mesmos elementos legitimavam a posse
dos meios de produção aos intermediários. Ou seja, os donos dos
meios de produção (fossem empresas públicas ou particulares) não
eram quem realizava os trabalhos, porém recebiam o material separado
e o comercializavam. Dessa forma, a exploração dos trabalhadores
era viabilizada por conceitos que, em sua maioria, eram legitimados
por leis.
A manifestação da consciência do processo de produção e,
conseqüentemente, da ruptura com a alienação culminou na fundação
de uma associação, de caráter jurídico, entre os catadores de
papel, em 1º de Maio de 1990. Legitimados pela Igreja, assessorados
juridicamente, conscientes do poder das ideologias e das leis, este
grupo de quarenta pessoas assumiu a posição de donos do meio de
produção referente a algumas das várias fases do processo de
reciclagem e reaproveitamento que eram desempenhadas por várias
empresas, de diversos ramos. Todos esses aspectos podem ser
apreciados no funcionamento da ASMARE.
Atualmente, a associação está presente em vários endereços:
avenida do Contorno nº 10.555 e rua Ituiutaba nº 460 (coleta,
separação, prensagem e comercialização dos materiais), avenida do
Contorno nº 10.564 (oficina de artesanato e reaproveitamento), rua
da Bahia nº 2.164 (Reciclo Espaço Cultural) e na Estação de
Tratamento de Resíduos Sólidos de Belo Horizonte, localizada na BR
040 (Eco-bloco). No entanto, inicialmente, mesmo sem um galpão
apropriado, os associados da ASMARE já interferiam no processo de
limpeza urbana interceptando os materiais que estavam destinados aos
aterros sanitários. Somente em 1992, a prefeitura de Belo Horizonte
construiu um galpão para a ASMARE na avenida do Contorno, nº
10.555. Nesse local, foi possível receber o material coletado pelos
catadores, separá-lo, prensá-lo e comercializá-lo. Assim, o
catador ampliou sua atuação dentro do processo, eliminou
intermediários (que somente prensavam e comercializavam) e pôde
receber uma maior “fatia” do produto social.
Os associados têm compromisso com o local de trabalho e, também,
têm autonomia. Eles gozam de um local coberto e projetado
especificamente para o desempenho de suas funções, além de
receberem proporcionalmente ao que produzem. Somente existe cota
mínima de produção a ser atingida como requisito para o
recebimento gratuito do auxílio vale-transporte. Segundo Índio,
associado que trabalha na administração, “vários catadores já
não precisam catar na rua, eles saem daqui pra ir pros pontos das
empresas buscar o material”.6
Assim, os atuais 286 associados percebem renda mínima suficiente
para o sustendo básico de suas famílias. Mais catadores não são
aceitos como associados na ASMARE devido ao já máximo
aproveitamento do local, sendo assim, um novo catador somente poderia
associar-se se um já associado sair. A razão exposta pela
administração consiste em que “tem que ter um lugar mais digno
p’ra proteger do sol e da chuva (...) o lugar é pequeno e eu não
posso deixar ele (o catador) no tempo”.7
Os idosos associados, que não conseguem mais coletar materiais com o
uso do carrinho, têm trabalho garantido na unidade localizada à rua
Ituiutaba nº 460. Nesse local, não se realizam coletas. A
prefeitura de Belo Horizonte disponibiliza funcionários e caminhões
que transportam o material já separado, através da coleta seletiva
programada que é disponibilizada por bancos, empresas, condomínios
e doadores em geral. Esse material é recebido, melhor separado e
prensado pelo grupo e, logo após, comercializado pela ASMARE.
Segundo Dona Geralda, a foi a maior conquista dos associados “foi a
gente conseguir o nosso próprio trabalho e renda. Antigamente, a
gente vivia na rua, fugindo de fiscal e de polícia, né?! Sem local
p’ra trabalhar... hoje, a gente tem local p’ra trabalhar”.8
Todo o desenvolvimento contou com o apoio de vários seguimentos,
como destacou Dona Geralda quando fora questionada sobre qual seria o
principal parceiro da ASMARE: “É a prefeitura e as empresas
doadoras, os condomínios... então, é a população em geral porque
todo mundo doa material p’ra a ASMARE, né!”.9
Já Índio10
destacou o convênio com o Banco do Brasil que disponibiliza todo
material usado, e que pode ser reciclado, para a ASMARE. No entanto,
ao longo do processo de construção de uma nova identidade,
destaca-se o papel desempenhado pelos próprios catadores e pela
Pastoral de Rua: “Se não fosse isso, se a gente não se unisse, se
não chegasse ninguém pra escutar nós, nós não existia mais. Nós
já tinha morrido de fome aí pela rua, já tinha virado... não
existia mais.” (DONA GERALDA apud FREITAS, 2005, p. 35)
O relacionamento entre os catadores de papel e a sociedade,
principalmente entre a prefeitura e as empresas privadas, apresenta
mudanças visíveis e relevantes. Hoje, a ASMARE dispõe de vários
convênios que viabilizam e garantem o trabalho dos catadores de
papel. Seu trabalho social e ambiental progressivamente adquire mais
reconhecimento, repercutindo nacionalmente e incentivando a
organização de mais catadores como, por exemplo, o Movimento
Nacional de Catadores de Material Reciclável (MNCR).
Conclusão: a construção de uma nova identidade
No decorrer deste trabalho, foram apontados vários elementos
ideológicos e imaginários que permeiam as relações sociais e que,
segundo Marx (Apud QUINTANEIRO; OLIVEIRA, 2003, p.), também fazem
parte da produção humana. A permanência de concepções antigas
nas cidades modernas é explicada pela História nos conceitos de
história de curta duração, história de longa duração e a
sobreposição destas. Na psicologia, segundo a teoria de
funcionamento da mente Inteligência Multifocal de Augusto
Cury (CURY, 2000), pode-se concluir que é impossível “amputar”
uma idéia que um indivíduo faz de determinada situação e, logo
após, substituí-la por outra. Mesmo no tratamento de pessoas que
sofrem traumas ou culpas, as idéias que os pacientes têm dos fatos
ocorridos não podem ser extirpadas porque elas são concebidas
envolvidas por uma carga emocional, construindo valores na memória.
No tratamento, então, como metodologia, cria-se uma nova
interpretação dos fatos ocorridos paralelamente à interpretação
existente, a fim de diminuir a carga emocional gasta na, antes, única
visão dos fatos (CURY, 2010, p. 134-140). Ou seja, cria-se uma ou
mais idéias paralelas à antiga e divide-se a carga emocional.
Assim, o paciente começa a assimilar outras idéias e constrói
novos valores, gerando opções para escolhas conscientes.
A Pastoral de rua trouxe ao catador de papel uma nova idéia sobre
eles mesmos e sobre a sociedade. Apesar de todo o aparato legal
existente, essa idéia chocava-se com a realidade vivida pelos
catadores. No entanto, a Pastoral não somente “injetava” uma
nova idéia, mas viabilizava sua concretização. A assistência e as
pequenas conquistas, tendo como suporte ideológico essa nova idéia,
dividiam, então, o espaço com o pensamento vigente. A assimilação
gradual é uma realidade. A nova visão construída pelo catador de
papel chocava-se com a dos olhos dos demais cidadãos e, também, com
a dele mesmo.
As idéias eram, então, concorrentes. As novas atitudes dos
catadores de papel eram visíveis na sociedade, porém o “estigma
de marginal” estava presente (FREITAS, 2005, p. 17). “O foco da
luta dos catadores de papel da ASMARE é o reconhecimento do trabalho
autônomo” (FREITAS, 2005, p. 16) desenvolvido por eles. Nesse
sentido, a ruptura com a alienação através da conscientização
dos meios de produção e do funcionamento da sociedade levou-os a
posicionarem-se frente ao poder público. Essa conscientização
elucidou o processo em que estavam envolvidos e os fez perceber que,
mesmo que seja notável e imprescindível o papel do catador de lixo
no processo de reciclagem, existe a exploração capitalista que usa
suas ferramentas para conseguir mão de obra barata: as acusações
morais e a desclassificação social camuflam essa exploração. Vale
destacar esta ascensão da consciência dos catadores na percepção
dos movimentos da sociedade e na identificação dos momentos
propícios para atitudes: a concepção das pessoas “mudou por
causa do meio ambiente. Hoje, a gente tem um planeta aí todo
estragado e se não se cuidar dele, vai estragar muito mais. Porque,
no mundo agora, tem uma consciência ambiental que não tinha
antigamente. Por isso que muda”.11
A manutenção dos status sociais vem sofrendo mudanças
através dos novos parâmetros advindos das relações econômicas
desde a ascensão da burguesia, haja vista que a percepção de maior
renda por parte dos que não eram nobres, dentre outros fatores,
construiu novos valores que culminaram na Revolução Francesa. A
hegemonia do Estado e a relevância da percepção de maior capital
podem ser verificadas na obra de Freitas através da mudança de
conceitos:
Não é, portanto, propriedade da sociedade moderna, mas
um produto que vem se modificando ao longo do processo histórico. Se
a noção de pobreza, no período medieval possuía significado
místico e se associava ao despojamento, nos tempos mais próximos de
nós ela é substituída pela noção de pobreza como falta. (2005,
p. 18).
Assim, a percepção de uma melhor renda tornou-se uma via de
ascensão na visão social.
Hoje, na sociedade, mesmo que pessoas (trabalhadores do mercado
informal) percebam renda superior à percebida por funcionários
públicos ou profissionais formados em curso superior, aquelas
pessoas não conquistaram ainda o respeito ou o status social
gozado por estes. É uma realidade nova, comum na atualidade e
facilmente visualizada quando se observa, por exemplo, um vendedor de
cachorro quente “da esquina” e um advogado frente a uma empresa,
afoito por uma causa. Novas atividades na economia são vítimas de
velhos conceitos que permanecem, até hoje, na sociedade, mesmo que
estas sejam mais rentáveis. Porém, ao garantirem qualidade de vida
para si, esses parâmetros vão se “esvaziando”.
É importante destacar que essa busca por reconhecimento acontece em
outras categorias. Vista a criação de melhores acessos à formação
superior e a disponibilização de mão-de-obra, instituições lutam
pela não-banalização do curso superior e as categorias, como os
professores e contadores, lutam por melhores salários como reflexo
do reconhecimento de seus trabalhos na sociedade. Desse modo, é
importante conscientizar-se de que a busca por valorização de
quaisquer categorias gera a desvalorização de outras, ou seja,
trata-se de um ciclo e as diferenças não terminam.
Vários problemas são enfrentados diariamente pelos catadores de
papel. A reciclagem é valorizada, junto à ecologia, mas o catador,
não. Soma-se isso à desvalorização do trabalho autônomo. Na obra
de Freitas, a observação de que o Estado brasileiro construiu uma
“tradição tutelar” (2005, p. 18) pelos tempos, através de uma
postura benevolente e assistencialista, é destacada a fim de
justificar a dependência que os cidadãos têm do Estado. Nesse
sentido, ela explicita a exaltação dos que dependem e seguem o
Estado em detrimento dos que agem com autonomia. Porém, mesmo não
sendo funcionários do Estado, ao invés de oferecerem
clandestinamente sua força de trabalho, os catadores de papel
tornaram-se personagens (juridicamente) participantes do processo de
reciclagem, conseqüentemente, percebem o deslocamento do capital
antes usufruído somente pelas empresas.
A consciência da existência dos problemas e suas causas é
essencial na busca por soluções. Mais conscientes da realidade,
como a situação vista na comparação entre o catador de papel e o
“gari”, os catadores associados tomaram medidas para construir
publicamente uma nova visão dos catadores na sociedade. Hoje, quem
se depara com um catador de papel da ASMARE encontra um trabalhador
vestido com uniforme padrão, trazendo nele o nome da associação,
usando carrinho de madeira pintado de forma padrão e que leva também
a logomarca da associação, além de não vê-los abrindo lixos na
rua. O lixo é recolhido e somente pode ser aberto e separado dentro
da ASMARE. O trabalho deles é garantido por lei e eles podem dividir
a participação no processo de reciclagem com os órgãos públicos
e empresas privadas sem a necessidade de licitação.
Todas as conquistas foram resultado de um longo trabalho. Segundo
Maurício, o que recebem pelo trabalho desenvolvido “ainda é
pouco!”.12
A prefeitura de Belo Horizonte construiu o galpão da ASMARE, paga as
contas de água, luz e telefone, além de disponibilizar caminhões e
funcionários, porém o único benefício que assiste aos catadores
de papel é o vale-transporte. Assim, o catador de papel ainda não
recebe os mesmos benefícios que os trabalhadores que estão sob a
C.L.T. (Consolidação das Leis do Trabalho) ou sob regime
estatutário. Há muito ainda para se conquistar, no entanto, muito
já fora conquistado e o esboço da identidade pretendida pelos
catadores de papel de Belo Horizonte já é percebido pela sociedade.
Além disso, esses catadores já refletem essa nova identidade ao
“pintarem” um novo auto-retrato: “Hoje, eu sou um catador
ambiental” (Maurício).13
REFERÊNCIAS
BOVE,
Maria Cristina. Atuação: Pastoral de Rua, 2010. Disponível
em http://www.arquidiocesebh.org.br/site/atuação.php?id=91
acesso em 13/09/2010.
CURY,
Augusto Jorge. 12 semanas para mudar uma vida. 14. ed. – São
Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2007.
CURY,
Augusto Jorge. Inteligência multifocal: análise da
construção dos pensamentos e da formação de pensadores. 8. ed.
rev. — São Paulo: Editora Cultrix, 2006.
FREITAS,
Maria Vany de Oliveira. Entre ruas, lembranças e palavras: a
trajetória dos catadores de papel em Belo Horizonte. – Belo
Horizonte: Editora PUC Minas, 2005.
MARTINS,
Liliane. Asmare recicla vidas com o lixo, 2007. Disponível em
http://www.atosimagens.com.br/noticias/asmare.htm
acesso em 07/08/2010.
QUINTANEIRO,
Tânia. Um toque de clássico: Marx, Durkheim e Weber / Tânia
Quintaneiro, Maria Ligia de Oliveira Barbosa, Márcia Gardênia de
Oliveira. – 2. ed. Revista e atualizada. – Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2009.
1
DONA GERALDA, entrevista dia 16/11/2010.
2
DONA GERALDA, entrevista dia 16/11/2010.
3
MAURÍCIO, entrevista dia 16/11/2010.
4
Art. 331 do Código Penal Brasileiro.
5
MAURÍCIO, entrevista dia 16/11/2010.
6
ÍNDIO, entrevista dia 16/11/2010.
7
ÍNDIO, entrevista dia 16/11/2010.
8
DONA GERALDA, entrevista dia 16/11/2010.
9
DONA GERALDA, entrevista dia 16/11/2010.
10
ÍNDIO, entrevista dia 16/11/2010.
11
DONA GERALDA, entrevista dia 16/11/2010.
12
MAURÍCIO, entrevista dia 16/11/2010.
13
MAURÍCIO, entrevista dia 16/11/2010.
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